"Butoh nas nuvens": crítica de Clarissa Brittes para "Mares e Nuvens Flutuantes"
O butoh é uma “coisa” que sempre me emociona. Tem um algo no estado contemplativo que me capta por horas a fio de uma simples caminhada se assim o for. Sublime... Minimalista …
Só não se pode dizer que é um descanso pros olhos ou um alento, porque não é nesse lugar. É exigente. É um lugar em que você se pega olhando para o vazio e sorrindo ou chorando junto com o/a performer. Lida, ainda, com algo de grotesco que geralmente me pega também…me pega na emoção e na admiração do insólito.
Acredito que em meio a nuvens foi a a vez que me peguei em sustos. Sopros. Banhos. Num ondular de estados…
De águas que voam de baldes, de tecidos que serpenteiam e desaguam no cenário e no figurino, de ondas em corpos que jorram ou se esgueiram, e que, assim, entram e saem de cena, que se revoltam e se acalmam no estômago (ou nos pulmões vazios e cheios de ar em nuances rítmicas a cada susto e alento).
A forma como a gente recebe um espetáculo sempre (ou quase sempre) está relacionada com o que estamos vivendo e sentindo no momento. Ao menos eu assim me permito quando aprecio. Sentir a obra ao invés de analisá-la e, com isso, se faz o ponto de vista meu.
Senti ali dois contrapontos: de um lado o que vem redondo e envolve, de outro o anguloso, a quebra, o corte, o incômodo.
Vem redondo o tempo desacelerado… aquele movimento que você quase não vê que moveu… vem desabrochando… como um pé que nasce de dentro de um tecido lentamente até se transformar em uma mulher girando e sorrindo com uma flor na cabeça.
Pode gerar incômodo para quem se insere no ritmo “agenda lotada” e “vídeos rápidos, curtos e cheios de corte” do mundo Ocidental. Eu…me pego imersa em ver mexer o pé e articularem-se os dedos da mão em cada detalhe; em ver os corpos se deslocarem no espaço em câmera lenta; em assistir o resgate da infância na voz de um corpo maduro …
Que engasga, que se afoga, que assusta e se assusta, que investe nos ângulos dos ossos… do rosto… do olhar… de suas expressões múltiplas de prazer e dor, de encantos e surpresas … doce e amargo… limpo e sujo … inteiramente presente e se desmanchando… um “que vem e te tira do transe” fazendo o contraponto.
O branco, o preto, o preto, o branco, a cor. O solo, o solo, o solo, o solo, o duo. Diversos elementos desenham esse ritmo que te capta, te capta e, então, te acorda.
Mares e nuvens que flutuam em braços e caminhadas que desenham o espaço, em ondas de algodões que descem ao fundo desde o teto, em camadas de saias de onde nascem corpos, em vestidos que desenham o espaço e de dentro deles o movimento reforçando e escondendo ângulos.
O Butoh sempre me emociona, me prende, detém a minha atenção plena aos detalhes de cada dedo, de cada micro transferência de peso, de cada caminhada flutuante ou cada giro deslizante que toma todo tempo para si para acontecer num lento respiro. Mas dessa vez pude também experimentar o aspecto do incômodo de ser arrancada do torpor.
Apenas alguns aspectos acabam desfavorecendo o desenho que é trazido ali: um deles são músicas que já são muito reconhecidas (o que possivelmente é proposital, mas que gera uma identificação para fora da obra); o outro se refere à disposição da plateia que (me parece) afasta um pouco e não privilegia a visão das cenas que acontecem próximas ao chão; por fim, o formato solo – solo em alguns momentos poderia ser mais confluente.
De qualquer forma, a obra é um primor na escolha dos elementos visuais todos, cenário, figurino, luz… e cumpre seu papel de nos gerar um estado de atenção, presença e admiração.