"Butoh e a escuta da música até os ossos": a experiência de Catharina Mohr com a imersão "Vestígios do Tempo"
Uns anos atrás assisti a um vídeo de Kazuo Ohno dançando My Mother (1998) fiquei assustada com aquilo. Achei esquisito. Quis muito gostar — em uma espécie de insistência. O que vi de estranho me acompanhou. Não digeri. Nas buscas descobri o livro Treino e(m) Poema da Editora N1 e me agarrei a beleza ali onde o abismo das palavras e do corpo se encontram em movimento como descreve Christine Greiner. Até o ano em que agora escrevo. Para ser mais exata: Setembro de 2025.
A Escola de Dança da UFBA divulgou uma Oficina chamada Vestígios do Tempo com Ana Medeiros e Nishi.
Vou de azul. Entro na sala em silêncio. Encontro com Ana assim que coloco a minha bolsa em uma das primeiras cadeiras do teatro. Ela sorri pra mim e eu sorrio de volta. O amarelo do seu vestido me chama a atenção. Sinto saudade daquela vista e do chão de madeira que deslumbram os meus olhos em repetições todas ás vezes as quais retorno. Como um recado muito refinado cravado na retina para não se acostumar com a beleza do que se repete.
Sento com o meu diário no chão. Observo Nishi ao fundo encarando o verde escancarado da mata. Há um altar com fotos e livros de Kazuo Ohno e Yoshito Ohno. Me aproximo como quem não quer (mesmo que no fundo deseje) revelar um segredo. Percorro devagar o olhar. Penso em cuidado como uma palavra chave para lidar com o MA que pode-se chamar também de espaço vazio ou possibilidade de corpo carne bailarino gente em criar novas imagens. Deve ser parecido com o que os diretores de um filme sentem. Acredito. Filme tátil de carne e osso.
Assisto Ana e Nishi apresentarem um pequeno pedaço da dança deles — e tudo me impregna. O vestido. Os dedos das mãos e a beleza da boca de Ana que modifica aos poucos acompanhando os olhos. Profundos e por isso vazios (de novo o MA e as novas imagens). Nishi e os seus pés que vão se abrindo lentamente. Logo em seguida inicia-se a aula. Um silêncio majestoso. Diria que escuto o som até dos ossos ou quero muito tentar. Me soa quase equivocado invadir esse silêncio mesmo com a música que ali existe. Há uma delicadeza bruta costurada na carne dessa dança. E como toda verdade pode soar violenta se vista de forma apressada. Não há do que se livrar. Também não é meditação.
Carrego uma flor de papel após dobrar um desenho cauteloso. Não é só imaginar. A flor brota agora em meu corpo. Borrar o espaço nos conta e conduz Ana. “Esse corpo que é difícil de existir mas existe. E a finitude é a nossa certeza.” Tudo é simples como andar sobre delicadas folhas de papéis. Trabalho de oposições. Diria que é um mergulho no ventre do mundo. Da mãe. Inclui sangue repulsa sexo desejo pus é necessário manter a carne viva. Não se rasga excluí ou excreta parte nenhuma para chegar as vísceras. Inteiro. Butoh é um culto a vida — e por isso não nega a morte. Até o oco das entranhas.
Agradecimento especial a Ana e Nishi. Professores que ensinaram com tanto cuidado e verdade me ofertando a possibilidade de lamber para sentir um pouco o gosto dessa prática. Compartilho esse pequeno relato com muita humildade curiosidade e desejo de continuar. E aos mestres Kazuo Ohno e Yoshito Ohno.