"A inefável dança entre vida e morte": crítica de Alyne Rehm para o espetáculo "Mares e Nuvens Flutuantes"

(foto de Fábio Zambom)

Quarta-feira, 9 de julho de 2025. Noite de estreia. No palco do Teatro Oficina Olga Reverbel, em Porto Alegre, se deu a primeira e única apresentação do espetáculo de butoh Mares e nuvens flutuantes, quinto espetáculo em que Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama dividem a cena e terceiro sob direção de Etsuko Ohno.

Antes de seguir, quero pedir já de antemão desculpas por quaisquer coisas que eu possa dizer sem o devido conhecimento da cultura japonesa. Não sou uma conhecedora dos hábitos e dos costumes japoneses, mas tenho a impressão de que, no Japão, tem-se muito respeito pela vida, pela morte, pelo tempo. Tanto no que tange a si quanto no que tange ao outro. Respeito e cuidado. E digo isso pensando que, desde os primeiros instantes do espetáculo, desde a entrada do público no teatro, havia respeito e cuidado. Ao entrarmos, recebemos um rolinho de papel. Não me detive a abri-lo. Guardei-o na bolsa enquanto me acomodava na cadeira e me pus a observar a cena. O respeito e o cuidado novamente lá: que cenário lindo! Que luz bonita!

A plateia conversa. Eu converso com colegas queridos que encontrei lá. Divido minha atenção entre as conversas e a contemplação daquele cenário tão branco, tão leve, e, ao mesmo tempo, tão imponente, tão forte. No centro e a frente do palco, reparo em um amontoado de tecido preto sobre uma mesa baixa. A luz diminui. Nishi entra em cena. Tão branco quanto o cenário, tão leve, e, ao mesmo tempo, tão imponente, tão forte. Que figurino lindo! Penso novamente no respeito e no cuidado, entregues em cada detalhe. Depois de me hipnotizar com sua movimentação, Nishi sai de cena.

Aquele amontoado de tecido preto sobre a mesa, que eu não conseguia ver muito bem devido ao lugar onde sentei, começa a movimentar-se. É Ana. Ela sempre esteve lá. Desde antes da entrada do público, desde antes do começo, ela estava lá. Igualmente leve e forte, mas de outra forma: como a morte, que acompanha a vida desde seu princípio, trêmula, como as carnes de Ana; como um fungo – penso num cogumelo –, que brota discretamente no improvável, que se alimenta da morte e que, com o passar do tempo, se faz exuberantemente vivo. A carne trêmula, a vibração suave, o movimento lento, amplo, que nasce na coluna e se estende até as pontas dos dedos, me capturam. Depois de me hipnotizar com sua movimentação, Ana sai de cena.

Entre solos e duos, entre pontadas e ondulações, entre preto e branco e amarelo, não importa se vai tudo bem ou se vai tudo mal: em algum momento vem a vida e nos joga um balde d’água fria na cara. Aqui, literalmente. Mas a vida segue dançando. E a morte segue junto. Elas dançam num equilíbrio inefável, o qual somos humanamente incapazes de compreender. Talvez não devêssemos levá-las tão a sérios. Respeitá-las, sim, com graça e alguma leveza.

Por acompanhar as redes sociais dos artistas, eu sabia que Mares e nuvens flutuantes é, em parte, um reenactment da obra The Dead Sea, de Yoshito Ohno, que teve sua estreia em 1986. E como reenactment, não é apenas uma simples reconstituição/reencenação, uma mera reprodução, como poderíamos traduzir apressadamente e com algum descuido; é uma reencenação que já é outra coisa, que gera diferença, pois apresenta muitas outras possibilidades de existência da obra que reencena, sob diferentes molduras afetiva, estética e política. Nas palavras de Ana, ela e Nishi reimaginaram a partitura de Ohno, atendendo a um pedido da própria família dele. Ao que me parece, os artistas mergulharam nas imagens da obra de Ohno e emergiram, em meio a espuma das ondas do mar, em outras imagens. Ondas que ora morrem suaves na areia, ora quebram violentas contra rochedos. Imagens que tecem conexões entre Brasil e Japão, que conferem brasilidade à arte japonesa do butoh e que atualizam a obra de Ohno, apresentando questões pertinentes ao nosso tempo, como a enchente de maio de 2024 que assolou o Rio Grande do Sul.

Ao final, após os agradecimentos, Ana nos conta que o rolinho que recebemos na entrada é a ficha técnica do espetáculo, a qual foi impressa em uma fina folha de um pinheiro típico do Japão, que ela e Nishi trouxeram de sua última viagem, para que tivéssemos um cheirinho de lá. Mais uma vez, o respeito e o cuidado. Quanto carinho!

Saí do teatro com a polêmica frase de Vinícius de Moraes na cabeça: “as muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Butoh é uma experiência estética; é um exercício de contemplação. Há beleza a ser contemplada na matéria física – nos cenários, nos figurinos, na luz –, mas também na matéria etérea – nos movimentos ora suaves, ora fortes; ora leves, ora pesados; ora sérios, ora jocosos. E beleza, aqui, não deve ser entendida meramente como algo belo, mas como algo que toca, que comove, que desacomoda, que causa reflexão. Afinal, não é essa a função da arte?

Em meio à aceleração em que vivemos, flutuando entre informações e imagens que tomam nossa atenção produzindo paradoxalmente um efeito de desconexão e de vazio, Mares e nuvens flutuantes vem na contramão dessa velocidade: é um convite para pararmos e investirmos nosso tempo em contemplar aquilo com o qual somos presenteados a ver, sem pressa, como quem caminha na beira do mar, observando as formas que as nuvens fazem ao passarem despretensiosamente frente aos seus olhos e sendo tocado pelas ondas que morrem junto aos seus pés, num exercício de conexão consigo e com o todo. Ana e Nishi nos ofertam com cuidado um espetáculo de grande beleza, em respeito aos nossos tempos, às nossas breves vidas e às nossas inevitáveis mortes.

* crítica publicada originalmente no Matinal Jornalismo