"Tudo que nasce sem nome": crítica de Airton Tomazzoni para o espetáculo "Mares e Nuvens Flutuantes"

(foto de Fábio Zambom)

Defrontar-se com o que ainda não havia. Essa foi a sensação ao assistir "Mares e nuvens flutuantes”. Mergulhei os pés num universo de outras densidades, confortáveis, desconhecidas, aderentes, viscosas às vezes. Sensações que se impunham à interpretações. O espetáculo que coloca em cena os intérpretes Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama novamente juntos. Como em outras obras de butô que me fascinaram, mergulhei num universo de sugestividades mais do que conclusões impositivas e apressadas. E assim passeie sem me preocupar com uma narrativa, coisa que preciso lutar às vezes, e me fascinei com o que nascia à minha frente sem nome.

Aqueles corpos repletos da maturidade teciam o tempo e tamanhos de gestos que comovem em cada pequeno movimento e deslocamento e se projetam para um infinito dentro da gente. Torções, tremores, suspensões, pausas, insistências, recuos, prolongamentos inesperados e modestos na sua grandeza. E uma parede acolchoada ganha ondas de cores e as vestes “desformam”. Todos elementos confluem para essa abertura de significados que brotam. E, nesse sentido, a ambientação musical nos envolve, ainda que uma composição original pudesse imprimir mais relevo a essa improvável jornada, com sonoridades também à deriva.

Dois intérpretes donos do seu ofício entregam-se a performances singulares e revestidas de uma humanidade não porque representam algo, mas por instauram ali, na nossa frente esses ritos de vida e morte que constituem nosso viver nos mais corriqueiros fazeres, nas mais pueris imagens, no displicente acontecer tão fascinante porque inteiro. Ana floresce, murcha, cantarola, revira, reina, sucumbe, nos inquieta, nos embala, cala. Nishi semeia, circunda, marcha firme, escorrega, flana, nos engana, mistura choro e riso e nos impulsiona.

Em um tempo de velocidade e superficialidades, a montagem nos presenteia com essa pausa envolvente e acolhedora. Em tempos de artificialismos e necropolíticas que nos achatam, “Mares e nuvens flutuantes” nos dá oportunidade de outros nasceres.