"Brutal e sensível": crítica de Paula Finn para o espetáculo "Mares e Nuvens Flutuantes"
(foto de Fábio Zambom)
Brutal e sensível
“Mares e Nuvens Flutuantes” fez sua primeira apresentação na cidade. Me lembro de assistir um espetáculo de Butoh há muitos anos quando, adolescente, minha mãe me levou no Sesi. Me lembro de piscar longamente e de rosas lindas em cena.
Há tempos acompanho o trabalho de Ana e Nishi de longe. Mas o meu estudo tem se afastado disso, por circunstâncias da vida e do trabalho (bailarinos da cia municipal são exigidos a ter uma dança vista em grandes movimentos).
Hoje, fui. Um cenário de formas palpáveis nos esperava. A cor branca, o Nishi movendo com cuidado e certeza, fluindo no entre-expressões. De repente, um pé. Não sei como, mas aquele pé carregava tanta poesia que meu olhos marejaram. E foi se tornando um mar de lágrimas à medida que aquela personagem-coisa-mulher se revelava vazia e presente. Fora-dentro de si, de nós, do aqui-agora, para além do tempo. O corpo deformava e revelava.
E assim seguiu. O personagem que vagava no espaço, ritualizando, celebrando e marcando passagens. Enquanto -ela- realizava uma travessia.
A cor amarela. A cor amarela. De lajotas douradas, fantasias vividas (ou não?), brilhando como vitamina D. Aliás, os figurinos, com suas formas rígidas, geométricas, obtusas e maleáveis deixavam esse corpo em constante deformação, ao mesmo tempo se apresentava de uma elegância digna à rituais. Fazia muito sentido. Tudo fazia muito sentido.
Lágrimas caiam do meu rosto, a morte rondando, costas-a-costas. O quase-movimento. A força que buscava - e chegava - no sensível. O espetáculo nos deixa em estado de incompreensão por presenciar a quebra das dicotomias. Me percebo escrevendo antônimos tentando encontrar palavras pro visto. Os dois ao mesmo tempo, o tempo todo. É o amarelo que quebra o preto-e-branco.
Recentemente li “A vegetariana”, livro de Han Kang, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Um livro único e perturbador, que perpassa a loucura, a arte e mais tantas palavras e sentimentos. Em alguns momentos a figura -ela- me trouxe a lembrança do sensorial, da narrativa, do muito do que eu não consegui verbalizar depois de ler. O figurino-flor da personagem do livro se pintou nos meus olhos e nos olhos vazios d-ela.
E tanto mais! A quebra extrema da água jogada que explora o imprevisível de forma extremamente bela. Quebras que não estavam tão alinhadas quanto às mudanças das músicas, elemento que -se posso salientar- merecia uma atenção antes da próxima temporada.
Me sinto afetada. Desejo sentir no corpo o que vi. Desejo ver de novo. Parabéns, Ana e Nishi, pela entrega da vida à essa arte e por trazer isso à Porto Alegre. Assim nos alimentamos.
Paula Finn - bailarina, professora e percussionista