Vida e arte se entrelaçam na visita de Etsuko Ohno ao Brasil como diretora de “O Sussurrar da Cigarra”

(foto de Jorge Eduardo Diehl)

Quando casou com Yoshito Ohno em outubro de 1962, Etsuko Ohno oficializou não apenas os laços com o marido, mas também uma vida ao lado do butoh. Yoshito sensei era filho de Kazuo Ohno, precursor do butoh junto a Tatsumi Hijikata, o que trouxe para Etsuko san o privilégio de ser testemunha ocular das transformações dessa modalidade de dança ao longo das décadas. Figurinista e maquiadora, ela acompanhou as apresentações da dupla em diversos pontos do mundo, até o falecimento de Kazuo sensei em junho de 2010 e o de Yoshito sensei em janeiro de 2020. O adeus aos mestres, no entanto, não afastou Estuko san e sua família do butoh. Pelo contrário. Foi no último mês de março, inclusive, que ela esteve pela primeira vez em Porto Alegre, no sul do Brasil, para acompanhar as primeiras apresentações de "O Sussurrar da Cigarra", espetáculo em que dirigiu os bailarinos Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama.

Aos 84 anos, Etsuko Ohno tem sido seletiva na hora de escolher os destinos de suas viagens. "Se ela não confiasse tanto no trabalho de vocês, não teria viajado até aqui", confidenciou Mikako Ohno, filha de Yoshito Sensei que também marcou presença na capital gaúcha. Mais do que acompanhar o espetáculo e fazer eventuais ajustes, Etsuko san participou de uma conversa com o público no MEME Estação Cultural, revelando algumas das memórias que ela leva consigo de Kazuo e Yoshito sensei, da concepção de "O Sussurrar da Cigarra" e de outros tantos momentos que ela vivenciou no Kazuo Ohno Dance Studio, um verdadeiro templo do butoh, localizado no Japão. Sobre a vinda de Etsuko san para o Brasil, Ana Medeiros comenta: “Ela nos trouxe coragem e certeza de que estamos no caminho. Tudo isso leva tempo, uma vida inteira para dançar. É muito raro, pelo menos para nós, sermos reconhecidos pelo nosso trabalho".

(foto de Gustavo Baggio)

Além desse reconhecimento, Etsuko Ohno reservou outro depoimento marcante para Ana e Nishiyama. Para ela, o butoh de Yoshito sensei terá continuidade através do trabalho da dupla, despertando um profundo sentimento de alegria e responsabilidade nos bailarinos. Segundo Ana, todo o trabalho realizado em parceria com Nishiyama traz Yoshito Ohno no coração, sempre com um butoh que fala sobre nossa essência, o cultivo da vida, o cuidado com os seres humanos e o estímulo para que cada um descubra o seu próprio butoh. "É um grande privilégio poder espalhar o legado de Yoshito sensei, falar sobre a família Ohno e espalhar um pouquinho de Kamihoshikawa, onde fica o estúdio de Kazuo Ohno", diz a bailarina, que também reforça a ideia de que o objetivo nunca é reproduzir ou imitar o trabalho de seus mestres, mas sim honrar a memória de cada um deles.

(foto de Hiroshi Nishiyama)

Sussurrares criativos

Vida em transformação. É assim que Ana Medeiros e Hiroshi Nishiyama definem o que está em cena com "O Sussurrar da Cigarra". O espetáculo carrega em si temas caros à dupla, como as dádivas da natureza e sua destruição associadas às dores e aos prazeres da existência. É claro que o resultado final não revela ao público os desafios criativos vividos até ali. Na conversa com o público, Etsuko Ohno brincou que falaria algo que, na verdade, não deveria revelar. Para ela, era horroroso o estado da dança de Ana e Nishiyama no primeiro ensaio com a equipe completa no Brasil. Disse não acreditar no que via. Naquele mesmo instante, começou a mexer na trilha, nas cenas e nos adereços. "Fez milagre em quatro dias de árduo trabalho", conta Ana, fazendo referência ao período entre a chegada de Etsuko Ohno no Brasil e a primeira apresentação de "O Sussurrar da Cigarra". 

Nos dois dias de espetáculo, Etsuko e Mikako Ohno saíam em busca de plantas e flores para o arranjo de flores que ela mesma, Etsuko san, criava dependendo das flores encontradas e da sua inspiração. A maquiagem de Nishiyama mudou de um dia para o outro, pelo fato de ela ter visto no sonho uma imagem. Com o Duda Cunha, o musicista da dupla, pediu para que ele tocasse mais forte e incluísse uma música de Pink Floyd que Yoshito sensei dançou no espetáculo "Suiren", de 1985. Também trouxe a coreografia que Tatsumi Hijikata havia feito para Yoshito nesse espetáculo, pedinto para que Nishi dançasse. Tudo isso somente no dia da estreia. "O Sussurrar da Cigarra" está minado de referências do repertório de Kazuo e Yoshito Ohno e banhado por memórias vivas.

(foto de Rachel Omoto)

Após dois dias de apresentações lotadas no MEME, Etsuko san contou ao público presente na conversa que estava contente com o resultado final do trabalho e com o retorno da plateia. Em relação à performance de Ana e Nishiyama, mencionou que o butoh da dupla a remetia muito ao trabalho de Kazuo Ohno devido à expressividade em cena. Kazuo sensei morreu aos 103 anos, e Etsuko lembra que, mesmo em uma cadeira de rodas, ele conseguia preencher um espaço e atrair a atenção de quem estava assistindo com o seu butoh. Ana concorda: "Quando, pela primeira vez, assisti Kazuo dançar aos 91 anos, chorei do início ao fim. Vi uma vida na minha frente se revelando. Vi a essência de um ser humano exposta, e isso era de uma beleza, de uma verdade, que nunca havia visto."

História viva do butoh

Com o butoh tomando corpo e voz na fala de Etsuko Ohno, o público presente na conversa esteve frente a frente com alguém que acompanhou bem de perto, desde o início, a evolução desse movimento artístico tanto no Japão quanto no cenário mundial. Sua abordagem não é acadêmica, mas, sim, a de quem viveu e conviveu no dia a dia com pessoas que revolucionaram as artes da cena — e ela própria não escapa a essa definição, uma vez que, apesar da falta do devido reconhecimento, revelou-se artista nos bastidores ao criar os figurinos e maquiagens de Kazuo e Yoshito Ohno. Trazer o olhar do butoh voltado à essência faz jus à dança e estabelece uma conexão real com o público, como aconteceu Apolônia Ceci Pauli, aluna de Ana e Nishiyama que assistiu ao espetáculo e participou da conversa. "Ela me passou suavidade e força. Senti grande amorosidade com sua presença e sou grata a ela e aos familiares que a acompanharam pela generosidade de terem compartilhado suas trajetórias de vida e memórias das vivências relacionadas ao butoh", aponta.

(foto de Takanori Kawahara)

Se, de início, Ana e Nishiyama estevam receosos com a vinda de Etsuko Ohno por ela ter na bagagem passagem por grandes teatros e eventos ao redor do mundo, não demorou para que a sensação se dissipasse na medida em que ela passava os dias em Porto Alegre. A dupla ouviu da própria artista que esta foi a sua melhor vinda ao Brasil. Em nosso país, Etsuko san multiplicou sua máxima que viva e pulsante: "Butoh é a verdade exposta de cada existência. Não é fazer de conta. Não é buscar uma fórmula". Impossível não associar essas palavras a um sensível depoimento de Kazuo Ohno: "Cuide bem da alma, tanto da sua quanto da dos outros. É isso que se transforma em dança". 

Arigato gozaimasu, Etsuko san!

(Além de Etsuko Ohno, estavam presentes na conversa: Mikako Ohno, filha de Yoshito sensei; Yuki Ohno, neto de Yoshito sensei, e Takanori Kawahara)

 Texto: Matheus Pannebecker