“O que habita o butoh é uma alegria sem fim”: a dança de Hiroshi Nishiyama e sua relação com o legado de Yoshito Ohno


* Por Matheus Pannebecker, especialmente para o blog

Sinta o seu corpo. Encontre o seu corpo. E, nesse momento, mova-se com o mínimo esforço. Sinta esse movimento. Sem esperar algo. Sem nenhuma expectativa. Experimente esse momento em que corpo e mente se encontram. 

Esse é o conselho que o bailarino Hiroshi Nishiyama dá a quem deseja aprender butoh. Seu lugar de fala é precioso: natural da cidade de Osaka, no Japão, Nishiyama conviveu, estudou e dançou por mais de 20 anos com os mestres Kazuo e Yoshito Ohno. Mais do que um discípulo desses lendários artistas na dança, Nishiyama diz que ambos mudaram sua vida para sempre, desde a primeira vez em que ele entrou em contato com o butoh: "Depois do meu melhor amigo insistir muito, fui assistir a um espetáculo de Kazuo Ohno. Assustei-me e deparei-me com uma dança que transbordava liberdade de movimento. A dança de Kazuo Ohno me deixou maravilhado. Fiquei surpreso e com muita vontade de dançar. Pensei que, ali, realmente havia encontrado o que estava procurando".


Hiroshi Nishiyama com Yoshito Ohno

O maravilhamento do bailarino com aquele momento foi tanto que, em 1990, após ter conhecido Kazuo pessoalmente, ele se muda para a cidade de Yokohama, a pedido do próprio mestre. Lá, passa a estudar a dança com ele e Yoshito, tornando-se um dos principais frequentadores do icônico Kazuo Ohno Dance Studio e mergulhando no butoh a partir de diferentes vertentes. "O butoh e as aulas de Kazuo Ohno focavam nas coisas invisíveis, como a imaginação, as emoções e em ideias abstratas, assim como os cosmos. Já o trabalho de Yoshito Ohno eram voltado para a corporeidade e elementos como o espaço, a gravidade, a densidade, o peso… Tanto Kazuo quanto Yoshito Ohno deixavam claro que a alma, o corpo e o espaço (‘ma’), são inseparáveis", avalia.

Após o falecimento de Kazuo, em 1º de junho de 2010, Nishiyama passa a estar ainda mais próximo de Yoshito. Juntos, dançam no Studio e em festivais como o SHINANO Primitive Sense Art Festival, em Nagano, que reúne anualmente uma seleção dos melhores artistas contemporâneos do Japão. Entre aulas, viagens ou somente passeios matinais para contemplar as cerejeiras tão características do país, Nishiyama conviveu, claro com o Yoshito bailarino, mas também com o Yoshito amigo, pai e professor. "Ele era muito unido com sua família, às vezes se desentendiam. Quando necessário, aconselhava seus alunos impiedosamente, mas também era um professor muito gentil e atencioso com o sentimento das pessoas. As aulas com o professor Yoshito são o alicerce da minha dança, o meu “tudo", lembra Nishiyama, com grande carinho.


Da esquerda para a direita: Mina Mizohata, Ana Medeiros,
Yoshito Ohno e Hiroshi Nishiyama no Kazuo Ohno Dance Studio.

Trazendo em seu corpo um marcante ensinamento de Yoshito — "habito o lugar que estou como se fosse a primeira e a ultima vez" —, Nishiyama diz ter aprendido com o mestre a dançar em estado de completa admiração pelo mundo ao seu redor. E era exatamente isso que ele via quando observava a interação de Yoshito com artistas, pintores, atores, músicos fotógrafos e tantos outros alunos que chegavam ao Kazuo Ohno Dance Studio para frequentar as aulas de butoh. "A relação de Yoshito sensei com seus alunos era ancorada na confiança. Tudo o que aprendíamos e vivenciávamos com ele ia além do butoh, uma dança que, ao contrário de outras, foca na experiencia, na vivência ", conta. 

Durante uma das aulas, Nishiyama viria a conhecer, através de Yoshito, a brasileira que viria a ser sua nova companheira de dança e vida: Ana Medeiros, com quem hoje ministra aulas regulares de butoh em Porto Alegre. Como professor, ele, ao lado de Ana, traz para o Brasil a experiência acumulada com Kazuo e Yoshito, mas, acima de tudo, a vontade de desbravar caminhos não descobertos. "No meu caso, ao invés de ensinar, quero descobrir com meus alunos algo desconhecido. Eu e a Ana criamos um espaço no qual os alunos estão livres para experienciar a interioridade do corpo, da alma e do espaço", define Nishiyama.


Hiroshi Nishiyama e Ana Medeiros:
parceiros de vida e dança.

É exatamente essa vertente que a dupla, em espetáculos como "Caminhos Pelos Quais" e "A Música Não Tocada", levam para os palcos em suas próprias colaborações, que hoje já foram recebidos, em Porto Alegre, por espaços como o Instituto Ling, o MEME Estação Cultural e a Casa Cultural Tony Petzhold. Para Ana e Nishiyama, a exemplo do que Yoshito tanto os ensinou, o importante desse trabalho pioneiro com o butoh no Rio Grande do Sul é expressar a relação entre o corpo físico e as coisas invisíveis que emergem da nossa subjetividade, da vida que nos toca, e tornar isso butoh.

Quando já estava estabelecido no Brasil, Hiroshi Nishiyama recebeu, no dia 8 de janeiro de 2020, a notícia do falecimento de Yoshito Ohno. Imediatamente, o bailarino voou para o Japão, onde daria adeus ao seu querido mestre. À memória, veio a lembrança de Nishiyama o último momento compartilhado com Yoshito: “Foi uma caminhada até o parque mais próximo do Studio para vermos as cerejeiras em flor. Isto, para mim, significa pensar que cada momento pode se tornar o último, por isso a importância de cultivarmos cada instante de vida, como se esta estivesse prestes a desaparecer".

Na linha tênue entre vida e morte, o butoh, para Nishiyama,  não é conseguir fazer alguma coisa, mas sim vir a ser, sempre em transformação… É universal porque está relacionado com a vida, ou seja, com o prazer constante de sempre experimentar o desconhecido, algo que fascina o bailarino. Ver Nishiyama dançar é tesemunhar o que ele próprio diz existir no butoh: beleza e tranquilidade. “As pessoas devem conhecer essa dança para compartilhar da felicidade de poder sentir cada movimento do corpo. O que habita o butoh é uma alegria sem fim", diz o bailarino, que leva Yoshito eternamente em seu corpo. 

Arigato gozaimasu, Yoshito sensei!


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ENTREVISTA COM HIROSHI NISHIYAMA (respostas em português/japonês)


1.Você teve a oportunidade de conviver com Yoshito durante muitos anos. Mais do que o artista, você viu o Yoshito amigo, pai, avô... Como ele era de perto, em sua intimidade?

Ele era muito unido com sua família, as vezes se desentendiam. Quando necessário ele aconselhava seus alunos impiedosamente, mas também era um professor muito gentil e atencioso com o sentimento das pessoas.

先生の家族は必要な時には団結し、時には喧嘩をし、言いたいことを言い合う正直な家族であったと思います。とても親密な家族です。
先生は生徒に対しても必要なときには容赦なく助言しました。何時も他人の気持ちを考えた上で話をされる優しい先生でした。

2. Quais são as lembranças que ficam do teu primeiro encontro com Yoshito? 

A lembrança memorável que guardo até hoje é dele me batendo na frente de todos os alunos depois de me ver dançar pela primeira vez.

最も印象的な思い出は私の踊りを先生に見て頂いた後で、みんなの前で殴られたことです。

3. Como foi para você se tornar um bailarino no Japão? Quais são as mais importantes vivências que você traz de lá? 

Comecei a dançar quando vi pela primeira vez a dança de Kazuo e Yoshito Ohno. Trago em meu corpo o que aprendi com Yoshito sensei: habito o lugar que estou como se fosse a primeira e a ultima vez. O de dançar, se possível, em estado de completa admiração pelo mundo ao meu redor. 

両師の踊りを観たことがきっかけで私は踊りを始めました。
自分自身が空間の中にいることに感動出来るようになったことです。

4. Em vários pontos, Yoshito deu sequência ao legado da dança de seu pai, Kazuo Ohno, mas também trilhou uma carreira com um de estilo muito próprio. Você conviveu e dançou com ambos. Como você define a relação entre o butoh dos dois?

O Butoh de Kazuo Ohno e suas aulas focavam nas coisas invisíveis, como a imaginação, as emoções e em ideias abstratas assim como o cosmos. Já o trabalho de Yoshito era voltado para a corporeidade, e elementos como o espaço, a gravidade, a densidade, o peso…tudo isso relacionado a experiencia da alma. Tanto Kazuo quanto Yoshito Ohno deixaram claro que a alma, o corpo e o espaço (ma), são inseparáveis.

大野一雄の稽古は感動、活き活きすること、想い、イメージ、抽象といった目に見えないものに重点があったと思います。
大野慶人の稽古は、肉体、空間、重さ、硬さ、密度といった誰もが体験的に知っていることが精神、魂とどのように関わっているのかを体験していくことに重点があったと思います。
両師は魂と肉体と空間は離れ難く一つであることを明らかにしたと思います。

5. Aliás, existe algum trabalho, alguma apresentação, algum momento da carreira de Yoshito que você leva como referência? Por quê?

A dança em um único espaço. A sua bela e animada dança com movimentos muito sutis em um espaço ínfimo. 

ワンプレイスダンス
小さなスペースで小さな動きだけで活き活きとしていて美しい踊り。

6. E o último encontro com Yoshito? O que essa última lembrança com ele significa para você?

O nosso ultimo encontro foi uma caminhada até o parque mais próximo para vermos as cerejeiras em flor. Isto para mim significa pensar que cada momento pode se tornar o ultimo, por isso a importância de cuidarmos/cultivarmos cada instante de vida, como se esta estivesse prestes a desaparecer. 

先生と近くの公園へ桜を見に散歩に行ったこと。
それは日常の一コマが最後のひと時と思って大切に過ごすこと意味します。

7. Você conheceu a Ana através de Yoshito. Como você o trabalho dela e a parceria entre vocês dois?

Eu respeito o seu ponto de vista em relação a dança. Gostaria que a minha dança se tornasse sua moldura. Em nossos trabalhos tentamos expressar a relação entre o corpo físico e as coisas invisíveis que emergem da nossa subjetividade, da vida que nos toca, e tornar isso–Butoh

私は彼女の踊りに対する姿勢を尊敬しています。彼女の踊りはとても美しい。私は彼女の踊りの額縁になれればと思っています。アナと私の関係性、肉体と目に見えないものや空間との関係性、観る人との関係性を表現していきたいと思います。

8. Chegando ao Brasil, quais foram as principais diferenças culturais que você percebeu em relação ao Japão?

Percebi que os brasileiros são mais abertos, compreensíveis e afetuosos 

ブラジル人は心が開いていて、とてもフレンドリーだと感じました。

9. Hoje você tem a experiência de ministrar aulas semanais de butoh ao lado da Ana em Porto Alegre. Durante anos, você também participou de aulas no Kazuo Ohno Dance Studio. Como era a convivência de Yoshito com os alunos no Studio e como é a tua relação com os alunos daqui? Dançar butoh é mesmo universal?

A relação de Yoshito sensei com seus alunos era ancorada na confiança. Muitas pessoas iam até o studio, eram pintores, atores, músicos, fotográfos e tantos outros. Tudo o que aprendíamos e vivenciávamos com ele ia além do Butoh.  No meu caso, ao invés de ensinar quero descobrir com meus alunos algo desconhecido. Eu e Ana  criamos um espaço no qual os alunos estão livres para experienciar a interioridade do corpo, da alma e do espaço (ma).  O Butoh, ao contrario de outras danças, foca na experiencia/vivência. Butoh não é conseguir fazer alguma coisa. Butoh é vir a ser, sempre em transformação… O Butoh é universal porque esta relacionado com a vida, o que significa: com o prazer de experienciar o desconhecido.

先生と生徒の関係は信頼で結ばれていたと思います。又沢山のジャンルの方が来られていました。画家、音楽家、写真家、俳優、サンバダンサーもいました。舞踏というジャンルを超えていました。

私は教えるというより、生徒と体験をともにしていきたいと思います。私達はある状況を作り、その中で生徒は自由に肉体と空間と魂を体験していく。それぞれが未知なるものを体験していく時間を共有したいとおもいます。

舞踏は体験するというところに重点があり、何かが出来るようになることではありません。

舞踏は未知なるものを体験することを喜ぶという、生きることそのものに関わっていて、とても普遍的なものだと思います