“Como se fosse o primeiro e o último encontro”: vivências de Ana Medeiros com o butoh e o eterno mestre Yoshito Ohno



Por Matheus Pannebecker, especialmente para o blog

A bailarina e coreógrafa Ana Medeiros diz que dança por necessidade. “Algumas pessoas falam com a voz, outras com a escrita. A minha voz vive no corpo”, logo define. Ela, que dança desde os sete anos, acredita que dançar é mesmo um ato transformador, mas que tudo, claro, leva o tempo necessário para que cada um encontre a linguagem de seu próprio corpo.

Levando em conta essa perspectiva, Ana, além de ser uma especialista em butoh, é uma bailarina de múltiplas vozes. As primeiras grandes experiências já foram no exterior: seguindo os conselhos de sua mestra Cecy Frank, Ana foi para Nova Iorque em 1990. Na bagagem, levava a concretização de um sonho: poder estudar dança moderna na prestigiada Martha Graham School of Contemporary Dance.

Foram 23 anos nos Estados Unidos. Lá, ela realizou, claro, o objetivo de ingressar na escola de Martha Graham. A partir dali, começou a coreografar e apresentar seus próprios trabalhos em espaços como P.S.122, Merce Cunningham Studio, 92 Street Y e Judson Church, passando ainda por países como França e Holanda, onde também performou.

Em 1996, na Japan Society, em Nova Iorque, ela testemunhava uma apresentação que mudaria para sempre não só a sua carreira como bailarina, mas a sua própria vida. Era nesta ocasião que Ana assistia à apresentação “My Mother”, do mestre Kazuo Ohno, precursor do butoh ao lado de Tatsumi Hijikata. “Chorei do início ao fim do espetáculo, sem saber ao certo o porquê. Ele, aos 91 anos, me fez sentir a fragilidade, a força, a vida”, lembra Ana.


Kazuo Ohno em "My Mother"

Hoje, olhando para trás, ela entende a razão da emoção: “Na dança ou no que eu estava acostumada a compreender como dança, a velhice era algo que se escondia, ao contrário do que estava vivenciando com a dança de Kazuo naquele momento. Entrei na fragilidade do corpo que trazia em si universos múltiplos: homem, mulher, velho, idade criança”. Daquele encontro, Ana levou uma certeza: um dia iria ao Japão aprender a dançar com Kazuo.

Ao conhecer uma dança japonesa em terras norte-americanas, a bailarina compreendeu que nada acontece por acaso. “É como se o meu caminho fosse abrindo portas onde fui encontrando o que precisava em momentos decisivos”, conta. Para ela, o butoh, já naquele momento, veio possibilitar uma compreensão de vida.  E vai além: “É o avesso de técnicas e teorias. Nele, a existência humana é ponto primordial de investigação”. Entre a dança de Martha Graham e Kazuo Ohno, Ana então passava a mergulhar por completo em algo que já era latente na sua dança: a busca pela essência.

“Tudo é preparação, viver é dançar”

Dezenove anos se passaram até que a bailarina desembarcasse em terras orientais pela primeira vez. Um defensor ferrenho da ideia de que a dança é muito mais do que técnica (“do momento em que acordo até o momento em que durmo tudo é preparação – viver é dançar”, dizia ele),  Kazuo faleceu em Yokohama no dia 1º de junho de 2010, cinco anos antes da chegada de Ana.

Quem lhe esperava, no entanto, era outro bailarino sagrado do butoh: Yoshito Ohno, filho de Kazuo, que seguiu os passos do pai no butoh e inclusive protagonizou “Cores Proibidas” (ou “Kinjiki”, em japonês), considerada a primeira apresentação mundial de butoh, dirigida e coreografada por seu próprio pai e Tatsumi Hijikata, com base no romance homônimo de Mishima. Ou seja, Ana ainda estaria muito próxima do bailarino que mudou sua visão de mundo.


Um dos primeiros registros de Ana no Kazuo Ohno Dance Studio

As lembranças são cristalinas: “Até hoje lembro do pavor que senti por ter me perdido de metrô e chegado 30 minutos atrasada na minha primeira aula particular com ele. Subi as escadarias que levavam do metrô ao Kazuo Ohno Dance Studio correndo e cheguei ofegante, suada”. Em um primeiro momento, ela conversou com Yoshito por mais de uma hora sobre a vida de Kazuo, a guerra, a parceria com Hijikata, a realização de “Cores Proibidas”, etc.

“Eu não acreditava que estava tendo aula com o grande mestre Yoshito Ohno. Eu, Ana Medeiros, no Japão e no Studio de Kazuo Ohno, onde tudo parecia um sonho e um grande privilégio”. Aos poucos, a bailarina passava a reconhecer nas palavras de Yoshito a necessidade de se aproximar e, se possível, ficar naquela montanha que olha o Monte Fuji. “Aprendia a querer menos, muito menos. E a simplesmente escutar e a estar presente”, lembra.

Yoshito em cinco tempos

Retornando ao Brasil após seu primeiro encontro com Yoshito, Ana, de forma pioneira, introduziu o butoh no cenário cultural gaúcho. Com pequenas turmas, passou a ministrar aulas regulares e workshops. Suas participações em eventos e em intervenções artistícas pela cidade foram aos poucos criando as raízes dessa dança vanguardista em Porto Alegre. Do sul do Brasil, também foi ao eixo Rio-São Paulo, além de idealizar espetáculos “Caminhos Pelos Quais” e “A Música Não Tocada”. O butoh nasce em terras gaúchas por causa dela.

Tudo isso, entretanto, só foi possível graças a um objetivo que Ana traçou ao longo desse tempo: fazer visitas sistemáticas ao mestre Yoshito Ohno no Japão. Ao todo, foram cinco viagens. Todas inesquecíveis, segundo ela. A última, aliás, realizada um pouco antes da morte de Yoshito em 8 de janeiro de 2020. É dançando e contando a sua história que Ana eterniza a memória de seu mestre e os aprendizados acumulados com ele.


Ana Medeiros e Yoshito Ohno em Yokohama

Quando perguntada sobre como definiria o butoh de Yoshito, a bailarina afirma: “É dançar a vida com o coração, apreciando cada ser vivo, tocando o invisível, celebrando os mortos. É o viver com humildade e consciência, trilhando o caminho, cultivando a cada instante a arte de existir”. Das performances de Yoshito, leva com carinho na memória “The Rabbit Dance”, onde ele dançava as memórias da infância e do envelhecimento, imbuído na trajetória humana dos que vivem no limiar entre a vida e a morte.

Bailarino generoso, Yoshito escutava com alegria as histórias que Ana contava sobre os espetáculos e sobre as aulas de butoh que já realizava no Brasil. Na primeira residência, inclusive, ela perguntou ao mestre se poderia passar seus ensinamentos para os alunos do Brasil. A resposta veio em forma de presente: Yoshito lhe deu uma pasta e outros materiais para que Ana trabalhasse nas aulas do Brasil, assim como traduções incansáveis da intérprete Mina Mizohata para que todos aqueles encontros pudessem ficar registrados. “Ele sorria e dizia: ‘leva para o mundo o que praticamos aqui’. Yoshito me enriquecia com seu legado para que tudo fosse passado adiante”, recorda.


Ana, Yoshito e Nishiyama no Kazuo Ohno Dance Studio

Durante uma das imersões, Ana conheceu Hiroshi Nishiyama, bailarino que, por duas décadas, foi aluno de Kazuo, participando também das aulas com Yoshito. Nishiyama, hoje estabelecido em Porto Alegre como parceiro de vida e dança de Ana, foi mais um presente proporcionado à bailarina pelo grande mestre, que os apresentou em Yokohama. Para ela, Nishi é a representação do próprio butoh: “Ele carrega a essência do Japão, a comunhão entre corpo, mente e espírito está presente em todos os seus atos. Ele possui a humildade e a delicadeza daquele que reconhece na nossa existência algo único e infinito, assim como a alma do butoh e a presença de Yoshito”.

Como se fosse o primeiro e o último encontro

Na última residência com Yoshito Ohno em 2019, Ana e Nishiyama ficaram hospedados na casa do próprio Yoshito. Mais do que como amigo e bailarino, a bailarina passou a observá-lo como esposo, pai e avô, compartilhando refeições e caminhadas matinais no parque, onde presenciavam a beleza das cerejeiras em flor ao livre. Era o que tornava o butoh muito mais palpável e o que preparava Ana para um episódio difícil e delicado que ela estava prestes a viver: o nascimento de um câncer de cólon.

Ana, Yoshito e as cerejeiras em flor no Japão

"Eu estava muito doente, ainda sem saber. Talvez, de uma forma inconsciente, caminhasse com Yoshito para me sentir viva". E foi assim até o momento em que Ana precisou transferir seus dias para o hospital, onde, durante as manhãs, via Yoshito e Nishiyama caminhando pela janela. “Lembro do meu querido Yoshito sensei me abanando pela janela, trazendo esperança com sua presença. Aprendi com ele a olhar, a escutar, a sentir a vida”, conta.

Após meses no hospital, onde fez três intervenções cirúrgicas, a bailarina voltou para aquela que seria a última aula com Yoshito Ohno antes de viajar ao Brasil. Com lágrimas no rosto e com o corpo estremecendo, ela diz ter percebido, enfim, a fragilidade do instante. No dia seguinte, prestes a voltar para solo brasileiro, Ana se despediu de seu mestre, carregada de um certo pressentimento de que aquele seria o último encontro entre eles em função da fase delicada de saúde que ela atravessava naquele momento.

“Segurei a mão de Yoshito entre as minhas e a beijei. Era muito presente a sensação de aquele poderia ser nosso último encontro, mas nunca imaginei que ele iria falecer cinco meses depois”, lembra. A despedida, contudo, também foi um ritual de agradecimento, onde foi possível para Ana poder tocar nas mãos de seu mestre e agradecer por toda uma vida ensinada e por toda a generosidade daquele que, com bondade e clareza, lhe deu rumo.


"Viver como se fosse o primeiro e o último encontro", dizia Yoshito

Em uma de suas últimas entrevistas, Yoshito Ohno disse que o butoh é sempre o quanto devemos a nossa vida a todos aqueles que vieram antes de nós. Com sua partida, é inevitável não pensar em agradecimento, legado e, claro, memória. Mas, afinal, como honrar esse legado? E, no caso de Ana, como honrar a vida de um mestre que a tocou profundamente?

Não há respostas prontas, mas há de se lembrar que, em sua dança, Yoshito orava pela humanidade e pela paz no mundo. A vida, para ele, havia de ser cultivada a cada instante. É por isso que Ana, sempre cercada pelos ensinamentos e pela lembrança do mestre, acredita que, talvez mais do que nunca, os ensinamentos de Yoshito sejam pertinentes frente a tudo o que estamos passando hoje. “Suas palavras ecoam alto em meu coração: viver como se fosse o primeiro e o último encontro, dance…”.

Em homenagem a Yoshito, dancemos!