“Acredito que a dança venha a ser uma experiência transformadora”, diz Ana Medeiros em entrevista ao jornal Correio do Povo

Correio do Povo: Como foi o processo de criação do espetáculo “Caminhos Pelos Quais”?

Ana Medeiros: Foi um processo rico, único. Todos os encontros com Yoshito Ohno sempre exigem entrega absoluta. Não existe outra maneira de trabalhar com ele. Para este espetáculo também contamos com a participação de Hiroshi Nishiyama, que traz sua vivência no Butoh por mais de duas décadas. Foi um privilégio único estar estudando e criando no Kazuo Ohno Dance Studio, lugar que é a raiz do Butoh, sendo Kazuo Ohno e Yoshito, juntamente com Tasumi Hijikata, os precursores deste trabalho que ultrapassa fronteiras e toca no cerne da existência humana. Para o espetáculo, também contamos com figurinos de Vanessa Berg e Margarida Silva Rache (Estúdio Hybrido) e do Kazuo Ohno Dance Studio, presenteados especialmente para realização do “Caminhos Pelos Quais”. Já na trilha sonora, trazemos clássicos de Rachmaninoff, Bach e Édith Piaf.

CP: Qual a importância da dança na sua vida e como ela pode impactar na vida de uma pessoa?

Ana Medeiros: Danço desde os sete anos de idade. A dança sempre foi o meu norte, o que deu e dá rumo à minha vida e às minhas escolhas… Sempre dancei por necessidade, necessidade de falar. Algumas pessoas falam com a voz, outras com a escrita. A minha voz vive no corpo. Acredito que a dança – e chamo de dança todo o movimento que o ser humano traz consigo e que é fruto de sua expressão autêntica – venha a ser uma experiência transformadora. Presencio isso com os meus alunos. Mas tudo leva tempo… O tempo de cada pessoa encontrar a linguagem de seu próprio corpo.

CP: Como foi a sua transição de estudar em Nova Iorque, e por que decidiu ir para Nova Iorque? E depois para o Japão? Quando e como surgiu seu interesse pelo Butoh?

Ana Medeiros: Fui para Nova Iorque em 1990, seguindo os conselhos da minha querida mestra Cecy Frank. Na época, estudava a técnica de Martha Graham com ela. A Cecy, na década de 70, morou por quatro anos em Nova Iorque, onde estudou durante este período na Martha Graham School of Contemporary Dance. Sabendo que meu sonho era seguir a carreira profissional na dança, ela disse: “vá para Nova Iorque e estude na escola de Graham”. Foi o que fiz. Fui dançar e fiquei por lá durante 23 anos.

Em 1996, na Japan Society em Nova Iorque, assisti pela primeira vez Kazuo Ohno no espetáculo “My Mother”. Foi uma experiência única. Ele estava com 91 anos. Até então nunca havia visto um corpo se transformar. Ainda mais um corpo de 91 anos! Na dança, ou no que eu estava acostumada a compreender como dança, a velhice era algo que se escondia, ao contrário do que estava vivenciando com a dança de Kazuo naquele momento. Entrei na fragilidade do corpo que trazia em si universos múltiplos: homem, mulher, velho, criança. Todas estas imagens se entrelaçavam na minha experiência com o Butoh e com a dança de Kazuo Ohno. Chorei do início ao fim do espetáculo, sem saber ao certo o porquê. Ele me fez sentir a fragilidade, a força, a vida. Tudo isso no corpo de um homem de 91 anos.

Depois do espetáculo, no bate-papo com o público, alguém lhe perguntou como era o seu preparo para o palco. Ele disse “do momento em que acordo até o momento em que durmo tudo é preparação – viver é dançar”. Naquela noite, disse a mim mesma que um dia iria ao Japão aprender a dançar com Kazuo Ohno. Dezenove anos se passaram, mas o Japão e o Butoh andaram sempre comigo. Em janeiro de 2015, tive o meu primeiro encontro com o Japão e Yoshito Ohno. Digo que a dança de Kazuo me levou ao Japão e a Yoshito, mestre generoso e artista singular da dança.

CP: Quais os principais ensinamentos e momentos vividos em sua última temporada no Japão que lhe levaram a criar este novo espetáculo?

Ana Medeiros: Sem perceber, fomos criando o espetáculo desde o início. Para Yoshito, o Butoh está nas experiências de vida de cada pessoa. Ele diz que trago comigo dois mundos: Brasil e Nova Iorque, e outros que já me habitam, mas que ainda os desconheço. Diz também que, desta vez, fui ao Japão escutando os ventos. Os ventos do nosso país, os ventos do mundo de hoje: tão conflituosos, tensos, incertos. Criávamos escutando o barulho de atentados na França, Turquia, Bangladesh. Os nossos ouvidos escutavam os gritos dos refugiados da Síria, do povo brasileiro perdendo sua democracia, seu rumo. Mas esta era a escuta de Yoshito Ohno. Eu escutava o Japão, absorvia no corpo a força e delicadeza deste monstro da dança. Houve também a feliz colaboração com Hiroshi Nishiyama, bailarino que vive o Butoh há mais de vinte anos, e que veio nos presentear com a sua dança no nosso processo de criação. Fomos tecendo mundos: Brasil, Japão, o passado e o presente… E os oceanos, as águas que unem estes continentes, estes encontros

CP: E qual a importância do Butoh na sua sua vida?

Ana Medeiros: Sinto o Butoh como uma filosofia de vida. Me encontro hoje a desenvolver a escuta nos lugares por onde ando e com as pessoas que encontro. A vida e a dança, hoje, acontecem de uma maneira mais humana, sem pretensão de ser ou querer algo. Essa é a importância do Butoh: dançando Butoh aprendo a ser gente.

CP: De todas as experiências que você teve ao longo da carreira, teve alguma que foi ou é mais marcante? Por quê?

Ana Medeiros: O primeiro encontro com Martha Graham foi inesquecível. Não acreditava que um dia na sala de aula lá estaria ela: o monstro sagrado da dança moderna, razão pela qual havia ido para Nova Iorque. Ela estava ali, no estúdio. Naquele dia, dancei para ela, dancei para Martha Graham, meu monstro sagrado. A mais recente e marcante experiência é aprender e dançar com Yoshito Ohno. Estar na presença dele é mais que um sonho, é sentir meu coração gritar a cada encontro. Dançar com Yoshito Ohno é como chegar a um continente desconhecido, é como nadar em mar aberto.

CP: Você viveu mais de 20 anos em Nova Iorque e agora está de volta a Porto Alegre. Como vê o espaço para a dança aqui na Capital e no RS, de forma geral?

Ana Medeiros: Vejo que o espaço para a dança em Porto Alegre é cada vez mais precário. Encontro meus contemporâneos da dança sobrevivendo e lutando para que os espaços de diálogos sobre a nossa arte e a sua prática existam na cidade. Eles continuam a acreditar no nosso ofício, na nossa arte. Devido a essa persistência cega (inerente à maioria daqueles que dançam), núcleos de dança, grupos aqui e ali, continuam a existir e a se diversificar, ampliando o diálogo, o fazer, e o pensar a dança. Percebo também que uma cidade sem cultura, sem arte, sem dança, é uma cidade morta. É difícil ser bailarino (a) em Porto Alegre. No entanto, talvez, essa dificuldade fomente novas formas de dançar (espero). As faculdades de dança que começam a brotar no Estado e na Capital também acrescentam para o melhoramento da dança, mas ainda não há espaço nem público para que exista uma profissionalização do bailarino (amadurecimento/oportunidades) por aqui.

CP: Por onde mais pretende exibir o espetáculo? Já tem planos para próximos projetos?

Ana Medeiros: Yoshito Ohno quer que eu leve este espetáculo pelo mundo. Por ter vivido em Nova Iorque, ele diz que é importante que eu dance lá novamente. Porém, sou mais realista, pretendo conseguir espaços para continuar dançando nesta cidade e no Brasil. E, com certeza, o mundo também está em meus planos. Sim, obviamente, quero cada vez mais aprofundar meu trabalho com Yoshito Ohno. Tenho planos de trazê-lo a Porto Alegre. Ele está muito interessado em vir até aqui. Todavia, certamente, este plano depende de editais e patrocínios para financiá-lo. Enquanto isso, continuarei indo ao Japão e a enriquecer a minha dança com o Butoh e os ensinamentos dele. Sigo e seguirei a ministrar as aulas regulares de Butoh na Casa Cultural Tony Petzhold. Irei transmitir e dançar Butoh aonde me chamarem. Em setembro, tenho dois workshops agendados que se realizarão na Sala 209, e na Casa Cultural Tony Petzhold Como disse, para mim, a dança é como ar, danço para viver.

* por Lou Cardoso e Júlia Endress para o blog Diálogos, do jornal Correio do Povo