Diário do Japão #4: entrevista com Yoshito Ohno

Quais são as suas primeiras lembranças relacionadas ao Butoh e quando percebeu que você levaria essa dança como um dos princípios de sua vida?

As primeiras lembranças são de quando comecei a ensaiar "Kinjiki" ("Cores Proibidas") com Tatsumi Hijikata. Quando Hijikata  disse "enrijeça o corpo e dance como pedra!", não acreditei que isso fosse dança. Até então, havia estudado NewTanz (dança expressionista alemã de Mary Wigmann), com Kazuo Ohno, e ballet clássico. O que Hijikata demandava era algo  totalmente novo para mim. Foi então que confessei a Yukio Mishima (escritor e autor de "Kinjiki") que não sabia se o que Hijikata exigia poderia ser considerado dança. Mishima disse que não me preocupasse pois Hijikata estava criando uma obra brilhante e inovadora. Durante este trabalho com Hijikata, achei na estranheza das imagens que ele sugeria o meu potencial como bailarino. Hijikata tinha o dom de trazer à tona as qualidades inerentes com quem trabalhava. Graças a ele descobri o meu potencial como bailarino.

O seu pai, Kazuo, certamente lhe serviu de inspiração para o caminho que você trilha no Butoh. Em que aspectos você procurou preservar o legado dele em sua dança? E em que pontos procurou inovar e escrever a sua própria história?

O legado mais importante de Kazuo Ohno, para mim, é o de que alma conduz a dança. Dançando, caminhando, quem leva é a alma. Essa é a lição que Kazuo Ohno nos deixou e é o que sigo ensinando e praticando com a minha dança. Tatsumi Hijikata disse "Yoshito, você dança o Butoh da alma, você tem esta qualidade única de criar e dançar o espaço, em seu tamanho milimétrico — valorize e cuide deste talento". Desde então, construo a minha trajetória no Butoh com esses princípios. Uno os ensinamento de Kazuo e Hikikata. Eles formam a base do Butoh que pratico. 

Dançar Butoh lhe proporcionou viajar o mundo e conhecer diferentes culturas, pessoas e paisagens. Ter percorrido o mundo mudou a sua dança - ou então a sua alma, que é um dos nortes do Butoh? Como?

Não digo que tenha mudado, mas sim aprofundado. Compreendi que existem aspectos universais que são fixos, e outros que têm a possibilidade de transformação. Independente do que chamar: espírito, Butoh ou alma, o principal é que exista a vivência disso no seu cotidiano. O Butoh nasce dessas experiências.

Ao contrário de outras danças baseadas no virtuosismo físico, o Butoh nasce de dentro, do silêncio, da alma. Não é algo para se explicar e sim para dançar, sentir. Talvez, em determinadas culturas, isso esteja muito distante da ideia que as pessoas têm da dança como espectadores ou praticantes. Você concorda?  Transmitir essa filosofia e esse princípio do Butoh é simples? 

O fato do público que vem me assistir se comover ao ponto de chorar significa que existe uma linguagem universal, sem fronteiras. Dançando, procuro tocar o coração de cada pessoa. O que ensino e busco no meu trabalho é revelar a essência humana. Se a dança encontra sua beleza é porque é verdadeira: a verdade nasce da essência de cada indivíduo. É isso, a verdade nasce da beleza humana. Para mim, a beleza é a mãe da verdade, e o público a reconhece.

E a relação com seus filhos? Como você acha que eles enxergam Yoshito como pai e como um ícone mundial do Butoh?

Acredito que  eles cresceram observando a dificuldade que Kazuo e eu tínhamos de nos sustentar financeiramente como artistas. Perceberam também que trabalhávamos muito; então, sempre nos respeitaram. Mas nenhum quis seguir na dança; talvez tenham notado que ser artista não traz estabilidade financeira alguma. Eles dizem que tem orgulho do meu trabalho de Butoh — sempre recebo o apoio de todos os três.

Um grande bailirino de Butoh precisa...?

Ter um complexo! Comecei a dançar com muitos complexos: não tinha flexibilidade, achava meu corpo estranho para ser um bailarino... Mas, graças ao Butoh e Tatsumi Hijikata, consegui fazer bom uso dos meus complexos.

O que você gostaria de deixar para as pessoas que te admiram e que já tiveram a oportunidade de dançar contigo?

Quero ensinar para eles que cada ser humano é uma obra de arte, e por isto a importância do cultivar a vida. O Butoh é o encontro da essência de cada um com sua existência (vida, cotidiano). Este é o tema mais importante para mim no Butoh: "treasure your life". Dentro deste tema encontramos as subdivisões do "criar o Corpo do Butoh, Karada", (Butoh Body): meet space, kamihitoe (one paper space), meet your body, walk, tissue paper, tateme (os temas são poucos). A essência do Butoh está na simplicidade, e na escuta continua de cada indivíduo consigo e com o mundo à sua volta.

Que conselho o Yoshito de hoje daria para o Yoshito que começou a dançar butoh décadas atrás? 

O Yoshito Ohno de hoje para o Yoshito do passado: "Dê valor a sua vida"

E a bailarina Ana Medeiros? Como você a define? E como você define a relação dela com o Butoh? 

Ela tem a combinação do seu aprendizado de dança desde a infância no Brasil com toda sua experiência de vida e dança em Nova York por mais de vinte anos. Isso a torna uma bailarina rara e maravilhosa. O Butoh dá voz ao encontro essencial dos mundos que ela percorre e outros que ainda desconhece mas que já a habitam. o Butoh está no cultivo da sua trajetória de vida. Eu quero que ela dance e se apresente no Brasil, em Nova York — no mundo!.